Unico SENHOR E SALVADOR

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segunda-feira, 2 de março de 2015

A Igreja Católica e o intervencionismo estatal

Vitor Barreto
O meio conservador brasileiro possui uma grande porcentagem de católicos romanos. Esses católicos têm lutado contra o socialismo e também contra o intervencionismo estatal, apoiando o sistema de livre mercado. Mas será que eles conhecem a doutrina social de sua Igreja? Será que eles conhecem o real posicionamento da Igreja Católica Apostólica Romana sobre as questões econômicas e como ela participou diretamente do crescimento do intervencionismo estatal no século XX?
Eles, os conservadores católicos, não esquecem de lembrar comumente, cheios de orgulho, que o papa João Paulo II combateu o comunismo especialmente na Polônia e na URSS. Isso é um fato, embora sem a política conservadora e o nacionalismo americano, que é essencialmente protestante, nada disso seria possível. Mas não sabem eles que o catolicismo também condena o capitalismo?
“O destino universal dos bens”. Essa é a expressão de João Paulo II (o mesmo que combateu o comunismo) em sua encíclica “A Preocupação Social”.
“Está nisto uma das razões por que a doutrina social da Igreja adopta uma atitude crítica, quer em relação ao capitalismo liberalista, quer em relação ao colectivismo marxista.”[1]
Diante dessa realidade, alguns deles, por falta de informação ou por apologia cega, intentam jogar toda a culpa dos posicionamentos errados assumidos pela Igreja no século XX na conta dos agentes inimigos infiltrados em seu meio. Mas os tais agentes infiltrados (que realmente existem) são responsáveis pelo posicionamento da igreja de Roma no assunto que estamos abordando? Parece que não. Mesmo os papas conservadores defendem exatamente os mesmos argumentos.
“É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo sãooriginariamente destinados a todos. O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade, de facto, grava ‘uma hipoteca social’, quer dizer, nela éreconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens. Nem se háde descurar, neste empenhamento pelos pobres, aquelaforma especial de pobreza que éa privação dos direitos fundamentais da pessoa, em particular, do direito à liberdade religiosa e, ainda, do direito àiniciativa económica.  [1]
Esses mesmos católicos mais teimosos e menos instruídos (que transbordam na internet) podem alegar que esse posicionamento do Papa João Paulo II está errado, mas que a Igreja antes não era assim. Tal objeção seria sem base. Eis o que diz a bula “Alegria e Esperança”, da Constituição do Vaticano II:
Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita. Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres — ‘alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste, mataste-o’ - repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos.” [2]
João XXIII, em “Mãe e Mestra”, na sessão “Iniciativa pessoal e intervenção dos poderes públicos em matéria econômica”, escreveu:
“Mas nele, pelas razões já aduzidas pelos nossos predecessores, devem intervir também os poderes públicos com o fim de promoverem devidamente o acréscimo de produção para o progresso social e em beneficio de todos os cidadãos.” [3]
Incrível, não? Os católicos acreditam que existem situações onde o roubo é lícito e por isso defendem que as forças públicas intervenham em matéria econômica. O título da sessão não deixa dúvidas: “(...) intervenção dos poderes públicos em matéria econômica”. Estamos portanto falando de intervenção estatal. Ele, o Estado, é o mediador entre o necessitado que, segundo eles, tem o direito de tomar a propriedade de outrem, e os donos das propriedades a serem distribuídas para o “bem comum”. Para os menos ignorantes, a leitura dos textos do Vaticano podem ser preocupantes pelo cúmulo de suas afirmações. Segundo eles, até os salários devem ser controlados:
“(...) é contra a justiça social diminuir ou aumentar demasiadamente os salários em vista das próprias conveniências e sem ter em conta o bem comum.” [4]
Agora, comparemos o que o papa João Paulo II disse com o que afirmou Lyndon Johnson, que assumiu a presidência nos Estados Unidos após a morte de Kennedy. Foi Johnson quem começou a criar programas de assistencialismo estatal que geraram verdadeiros monstros econômicos tão criticados por Ronald Reagan, queridinho até pelos conservadores católicos. Agora comparemos o que o papa João Paulo II disse na citação anterior dentro do contexto de seu projeto “Great Society”:
“Direitos Humanos são mais importantes que a propriedade privada… Nós precisamos tirar de quem tem para dar a quem não tem.”
Ambos têm exatamente a mesma visão. Ironicamente, os conservadores católicos no Brasil condenam o intervencionismo estatal que é defendido pelo Vaticano por uma dedução lógica de sua cosmovisão. Na prática, a Doutrina Social da Igreja Católica produz o efeito exatamente contrário do almejado. Essa é a crítica dos liberais. A pobreza só pode ser combatida com a geração de riquezas e o livre mercado é a melhor opção.
A pergunta importante é: qual é a origem desse posicionamento? Não há incoerência nas afirmações supracitadas com a teologia católica oficial. Elas na verdade são coerentes com o ensino oficial (exceto quanto à visão da sociedade em relação à justiça social). A origem da doutrina social da Igreja Católica firmou-se em Tomás de Aquino.

Tomás de Aquino e Robin Hood

Henry William Spiegel escreveu:
“Tomás de Aquino não escreveu nenhum tratado econômico, mas seu pensamento, baseado em Aristóteles, é fundamental para a compreensão do pensamento econômico da Igreja Católica Romana.”[5]
Busquemos então a raiz que justifica o intervencionismo estatal na doutrina social social.
“A comunhão de bens é pertencente à lei natural; não que a lei natural dite que todas as coisas sejam possuídas em comunhão e que nada possa ser propriedade individual (privada), mas porque a divisão dos bens não se dá de acordo com a lei natural, mas é oriunda do acordo humano, que pertence à lei positiva (…) Portanto, a posse de bens é não contrária à lei natural, mas adicionada a ela pela razão humana.” [6]
Com essa citação vemos a compreensão tomista da propriedade e dos bens. Para Aquino, na natureza não existe nada que induza a propriedade privada como um valor absoluto. Pra ele, a propriedade privada é fruto do acordo humano apenas. Vejamos, a seguir, algo bem mais controverso:
“A necessidade torna todasas coisascomuns. E, portanto parece não cometer pecado quem se apodera da coisa de outrem levado pela necessidade, que lhe tornou essa coisa comum.” [6]
“É legal para um homem socorrer sua própria necessidade por meio de propriedade alheia, tomando-a tanto abertamente quanto secretamente. Isso não é, tecnicamente falando, roubo ou furto, tomar secretamente e fazer uso de propriedade alheia em razão da extrema necessidade. Porque aquilo que o homem toma para preservar a própria vida torna-se sua própria propriedade em razão da necessidade… E no caso da necessidade de um homem, o seu próximo pode tomar a propriedade de um terceiro no intuito de socorrer a necessidade de seu próximo”. [6]
Uau, um advogado de Robin Hood! Tomás de Aquino diz que tomar a propriedade de alguém sem autorização, no caso de necessidade, não é roubo nem pecado! Tomando ainda como referência o conceito de sociedade e o papel de Estado construídos pelo escolástico por influência de Aristóteles (e não das verdades pressuposicionais da Escritura), a Igreja Católica reconhece que o Estado pode perfeitamente assumir o papel de Robin Hood.
Eu gostaria de saber: que diferença há entre isso e o socialismo? A “necessidade”? O conceito de necessidade não parece ter sido bem definido, já que os papas defendem em suas bulas e encíclicas que o bens manufaturados produzidos nos países desenvolvidos também deveriam ser distribuídos aos países subdesenvolvidos; e isso é bem mais do que apenas um caso de fome imediata. Relembremos as palavras do Concílio Vaticano II:
“Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita. Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres — ‘alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste, mataste-o’ - repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos.” [2]
Há, portanto, total coerência no posicionamento da Igreja Católica sobre o intervencionismo estatal. Mas Tomás de Aquino está certo?

Uma crítica bíblica a Tomás de Aquino

Em primeiro lugar, é questionável todo o posicionamento de Tomás de Aquino em relação à propriedade. A Bíblia, que deveria ser a regra básica de todo cristão, mostra que Deus reconhece indefectivelmente a propriedade. A Lei de Deus é clara: não roubarás nem cobiçarás os pertences do teu próximo. Deus não abriu exceções. A Lei não é relativa, mas absoluta. Está implícito que Deus reconhece a propriedade privada como sendo real, legítima, e não há qualquer alusão a uma mera convenção positiva entre os homens que legitime a tomada da propriedade feita por acordo dos homens de modo a tornar seu direito subjetivo. Como demonstraremos com mais detalhes no próximo tópico, as especulações tomistas nesse sentido demonstram o erro básico de Tomás de Aquino: o método.
É claro que, em relação à propriedade privada, a Lei Mosaica, ao mesmo tempo em que a reconhece, impõe-lhe limites. Ela preceitua, por exemplo, que os grandes donos de terra deveriam reservar uma área periférica de suas propriedades para que os pobres pudessem cultivar seus próprios alimentos. Mas existe uma grande diferença entre limitar a propriedade privada e roubá-la, como Aquino defende. O próprio Agostinho de Hipona, por exemplo, discorda da legalidade do roubo para auxiliar um necessitado.
O mais famoso escolástico, contudo, diz simplesmente: “A necessidade torna todas as coisas comuns”. É uma afirmação ridícula. Calvino talvez dissesse que o erro dele aconteceu porque o mesmo não exercitava-se nas Escrituras. Vejamos um provérbio bíblico numa tradução dos próprios católicos que confrontam essa defesa da tomada de propriedade:
Não se despreza o ladrão quando furta para satisfazer os apetites, quando tem fome; se for preso, restituirá sete vezes mais e restituirá todos os bens de sua casa.” (Provérbios 6:30-31 Bíblia Ave Maria)
Está claro que o ladrão não é justificável quando rouba pra saciar sua fome, como o “Doutor Angélico” erroneamente defende. O ladrão não é “desprezado”! Ele deve pagar pelo roubo! A Escritura não o justifica.
Infelizmente para o doutor da igreja, não poderia haver diferenças entre a Lei de Deus e a Lei Natural, caso ela fosse verdadeira. Mas pela razão somente não podemos sequer defender a existência do pecado consistentemente. Nós sabemos do pecado porque a Lei de Deus está escrita no nosso coração e não é necessariamente discernida por um caminho ontológico racional da abstração das ideias por empirismo. O contexto mostra que o autor do provérbio compara tal furto com as consequências do adultério, que, na tradução católica, é condenado a despeito de qualquer situação que lhe seja imposta. Quem tem mais autoridade: a Escritura divinamente inspirada ou Tomás de Aquino? Quem fala em nome de Deus é o profeta. Mas Tomás não escreveu a Suma Teológica na qualidade de profeta. Os autores bíblicos sim. Se a Escritura diz, nós aceitamos como verdade, buscamos entender e ponto final.
Os erros interpretativos especialmente em seu desenvolvimento da “Lei Natural” não terminam aqui. Nem suas consequências negativas. Seguindo a tradição do moralismo medieval, e essa seguindo a influência do (neo)platonismo dentro das ordens monásticas dos primeiros séculos, Aquino considerava qualquer acúmulo de riquezas como avareza, ou seja, pecado. Especificamente esse julgamento do teólogo foi criticado pelo cardeal Caetano [13], um pós-escolástico tomista e um dos pioneiros no desenvolvimento da ciência econômica. Caetano considerava a condenação de Tomás exagerada. O autor da Suma Teológica também condenou a usura, e essa foi uma das principais razões para o atraso dos países católicos em relação ao desenvolvimento do capitalismo, isto é, do atraso econômico dos países sob influência do Vaticano. Nos países protestantes, a interpretação de João Calvino sobre a usura (contra a interpretação católica) abriu espaço para o desenvolvimento do livre mercado, ainda que não uniformemente, no norte da Europa.
A base tomista que sustenta o posicionamento do intervencionismo estatal do catolicismo é grosseiramente falsa. A Bíblia não dá a ninguém direito de tocar na propriedade privada de outrem, ainda que a mesma Bíblia condene quem não pratique caridade. Deus considera a vontade do proprietário e o condena pela falta de caridade, mas não legitima o intervencionismo estatal ou o roubo. Quando os católicos conservadores brasileiros defendem o liberalismo na economia e combatem o intervencionismo estatal, estão claramente indo contra o ensinamento do Magistério que advogam. A doutrina social católica é economicamente posicionada como centro-esquerdista.
Quão grandes malefícios nos trouxeram os erros de Tomás? Talvez ainda não tenhamos vislumbrado todos.
É inegável, pois, como diz John Robbins, a participação da Igreja Católica, e seus“homens escolhidos, chamados de ‘auxiliares da Igreja’ [referência a uma expressão usada na ‘Quadragésimo Ano’], que têm sido importantes para o fim do sistema de livres empresas do século XIX e substituído pelo sistema de interferência estatal no século XX.”[8]
Notas:
[5] Henry William Spiegel, "The Growth of Economic Thought". Revised edition, Durham: Duke Universitym Oress, 1983, 57.
[6] Tomás de Aquino, "Suma Teológica", II-II, Q. 66, art. 7º; http://www.permanencia.org.br/drupal/node/5108
[8] John W. Robbins, Ecclesiastical Megalomania. 

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